No tempo em que olhava para as nuvens

Tudo era mais simples quando passava horas olhando para as nuvens a descobrir com que se pareciam e no que poderiam se transformar a cada vento. Tudo era mais simples, quando a criança obediente aos pais deitava mesmo sem sono, sem conseguir dormir e passava a observar as marcas das telhas velhas que cobriam o quarto, o fato de serem velhas jamais incomodou, as telhas marcadas pelo tempo abriam espaço para minha imaginação capaz de contar histórias a cada noite de ansiedade por um novo dia.

Menina que mesmo sem ter muito que fazer era só ansiedade, ansiedade que a cada novidade, cada viagem, cada acontecimento aumentava ainda mais. Perdia o sono, a fome, mas a imaginação continuava lá para abrandar e por vezes diminuir minhas inquietações. Lembro-me como dormir era chato e nem sei como era capaz de afirmar que dormir era perda de tempo.

Apesar de todos a minha volta sempre dizerem que devia aproveitar a tranqüilidade da infância, em que não tinha com que me preocupar, não dava muita atenção, sempre com subtextos e milhares de perguntas na mente. Na minha cabecinha ingênua tudo era capaz de ser qualquer outra coisa, semelhante ou não. Torneira se transformava em microfone de rádio, espelho em TV particular, rachaduras na parede em mapas que revelavam o tempo. Não faz muito tempo que isso aconteceu, mas já sinto essa fantasia distante de mim. Não tenho mais o mesmo tempo. Acho que já entrei na fase em que não se pode escapar do sistema. Se é que isso é real. Ao olhar para as nuvens o máximo que consigo ver é se vai chover ou não para saber se devo levar o guarda-chuva. As telhas que alimentavam histórias em mim passaram a me incomodar e logo foram substituídas por telhas novas. A ansiedade foi omitida por um maço de cigarros, vício maldito sem o qual já não vivo. Na maior parte do tempo o que quero fazer é dormir, minhas olheiras, eternas companheiras refletem a falta que o sono me faz. Os subtextos deram lugar aos resmungos, a insatisfação de uma quase escrava disfarçada de assalariada.

Deitar sem olhar para o teto, deitar sem pensar no amanhã, a não ser nas contas a pagar, sair antes de escurecer, chegar quando estão todos a dormir. Como era bom o tempo em que podia sentar na calçada, observar pessoas, carros, estrelas e deixar as horas rolarem até escutar um grito de ordem me tocando pra dentro. Quando 21h já era tarde para se estar na rua, quando arrumar a casa era diversão, ler era passatempo, jornal era coisa de adulto, guerra coisa de livro e as nuvens eram o que eu queria que fossem.

*Texto publicado na Revista Ensaios – n.1, v.1, ano 1, 2º semestre de 2008, Publicação de graduandos da Universidade Federal Fluminense.